A ARTILHARIA
Numa guerra moderna a Força Aérea é de vital importância quando bem complementada pela Força Terrestre de Ocupação. Eu próprio tive a oportunidade de vivenciar essa situação.
Aos 19 anos de idade,em 1960, ingressei no Exécito Brasileiro, cumprindo a Lei do Serviço Militar Obrigatório. Na época eu cursava o terceiro ano científico e me preparava para o vestibular no ano seguinte.
Eu não revelava nenhuma vocação militar e no quartel eu me sentia um estranho no ninho.
E era uma unidade militar de elite. Era o G Can 90 AA, quer dizer o Grupo de Canhões 90 mm Antiaéreos, moderníssimo.
Comecei como soldado raso, sem nenhuma aptidão para as armas. Não tinha porte guerreiro, não tinha voz de comando, nem atitude dominadora, embora eu sendo alto e magro, de braços longos, fosse atacante da seleção de vôlei da cidade, no que os oficiais não acreditavam
Meu apelido era "O voador". Vagava nas nuvens. Atrasava nas chamadas, errava o passo na ordem unida e uma vez cheguei a perder o mosquetão. Uma falta gravíssima para um soldado em guerra. Saí vasculhando as dependências do quartel, procurando e perguntando pelo meu mosquetão. Por fim achei o bendito, encostado num canto do vestiário.
Mesmo sem talento para a vida na caserna, prestei concurso para cabo e fui aprovado com a melhor nota.
Fui designado para o posto de Cabo Calculador, o mais importante da Segunda Bateria. Fiquei até orgulhoso de poder proteger o espaço aéreo da minha cidade, e ainda apoiar a Infantaria. Eu estava aprendendo.
A Segunda Bateria de Canhões 90 Anti-aéreos compunha-se de um poderoso radar, um computador e quatro potentes canhões de 90 mm de calibre.
O radar localizava o avião inimigo e enviava para mim os dados da localização, registrados no computador. Minha tarefa era introduzir as devidas correções em função de inúmeras variáveis: velocidade do vento, velocidade do avião, direção do vôo, turbulências, posiçao atual e posição futura. Não era fácil. E enviava para os canhões a posição exata do avião no momento em que ele se chocaria com a bala. Minha função era acertar o inimigo em pleno vôo.
O equipamento era de primeira, fornecido pelos EUA, mas a operação em si era um simulacro. Felizmente. Era tudo de mentirinha. Nos exercícios raramente eu errava o alvo. Minha preocupação era a Argentina, nossa pseudo-inimiga, caso ela resolvesse invadir o nosso espaço.
Meu verdadeiro interesse no tempo do quartel era minha preparação para o vestibular. Decidi prestar para Letras Anglo-germânicas na PUC, Rio. As matérias eram francês, inglês, português e latim.
Decidi concentrar-me no latim. Carregava comigo o tempo todo uma Gramática Latina, por sinal excelente, escondida na farda. Era meu "vade mecum". Assim eu tirava serviço de plantão nos diversos postos, preparando- me secretamente.
Uma vez, em plena madrugada, eu estava de plantão no Parque das Viaturas. Procurei um lugar adequado. Era o carro do Cap. Ernesto, um oficial rigorosíssimo. Acomodei o mosquetão sobre o para-lama, encostei-me e abri a Gramática. Pouco tempo depois, inesperado, do total escuro surge a Ronda Noturna.
Era o Cap. Ernesto. No flagrante ele me pega de Gramática em punho, confortávelmente sentado no para-lama dele. Ficou furioso e ameaçou "sentar-me a Pua". Por milagre acalmou-se, ao verificar que eu estava lendo "A Guerra da Gália", de Julio Cesar, no original romano. Foi o que me salvou. Não sei quanto isso valeu, de positivo ou negativo, no meu prontuário.
Em outra ocasião, eu estava chegando no quartel, caminhando com dificuldade, mancando muito por causa de uma dolorosa unha encravada dentro do pesado coturno. Por acaso aparece por ali o Coronel Comandante e me passa a maior repreensão: "Porque esta manqueira toda?" Quase não encontrei palavras para me justificar. Fui logo para a enfermaria me tratar. Era um coturno muito rústico que frequentemente encravava a minha unha. Era minha sorte. Eu era sempre o último na fila da enfermaria. Assim eu tinha mais tempo para estudar latim.
No dia 31 de dezembro tirei serviço de Cabo da Guarda. Não era mais sentinela. Naquela noite estudei a última página da magnífica Gramática Latina de Napoleão Mendes de Almeida.
Em janeiro requeri uma licença para ir ao Rio fazer as provas, escritas e orais. Tirei 10 em latim. Foi a maior nota. Ganhei uma bolsa, voltei para o quartel, apresentei-me ao Tenente-coronel, sub-comandante, e este comunicou ao Coronel Comandante. Este ficou muito orgulhoso, redigiu um longo elogio a ser publicado no Boletim. Era sua última semana no Comando. Na festa de despedida o Boletim foi lido para toda a tropa e para a sociedade valenciana presente, com grande repercussão. Eu não estava presente. Estava no Rio fazendo a minha matrícula. No dia seguinte me contaram.
O elogiu valeu tantos pontos positivos, que eu fui logo contemplado com a primeira baixa. Liberado do Exécito fui para o Rio estudar. O Coronel Cardoso, por sua lídima competência, foi logo requisitado pelo Presidente Jânio Quadros para um alto cargo no Palácio do Planalto, recém inaugurado em Brasília, em 1961.
Assim eu concluí o meu ciclo de vida militar, como Cabo Calculador, apto a ser promovido a Sargento na próxima convocação para a defesa anti-aérea.
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