Crônica da Mãe Terra - Ana Primavesi


Um texto exclusivo encontrado em meio às aulas de Ana Primavesi quando lecionava em Santa Maria-RS.

Que em 2020 possamos cuidar de nossa Mãe terra como Ana Primavesi sempre ensinou, com amor e respeito.

 Sou a mãe terra que gruda nos sapatos e suja os assoalhos, e que incomoda os que vivem na cidade e querem tudo bem limpinho. Se defendem contra a “sujeira” pelo asfaltamento das ruas e estradas e pelo uso de automóveis para não precisar pisar no barro.

 Sou a terra que produz as colheitas que lhes fornecem os alimentos, as colheitas comerciais como café, açúcar, cacau, algodão, chá-da-índia e guaraná, que fornece a cana para o álcool combustível, produz fibras como sisal e juta, óleos como o de mamona, babaçu e dendê, látex e, nem por último, os condimentos como pimenta-do-reino, cravos, canela, louro e muitos, muitos outros. Armazeno a água nos meus poros para as plantas e nos depósitos subterrâneos para as fontes e nascentes que abastecem os rios e represas para poder gerar força-luz nas suas usinas hidrelétricas.

 Sou a terra que forma seu corpo, sua saúde e sua inteligência. Não digo isso porque a  bíblia conta que o homem foi feito de  barro mas porque um óvulo fecundado nunca poderia formar um corpo do nada. Ele fornece somente o padrão genético segundo o qual  se forma o ser vivo. Mas seu corpo é constituído de minerais. E estes as plantas retiram da terra e os fornecem a todos que ali vivem. Quando seu corpo se decompõe ou se for cremado, resta somente um punhado de cinzas, minerais.

 Antigamente a Igreja Católica lembrava isso no batismo quando rezava: “Lembra-te de que és pó, e ao pó retornarás.” Mas o homem moderno não gostou  do momento “morri” e este foi abolido. Mas mesmo com todo esquecimento, foi, é e será o corpo formado por minerais.

 Terra são minerais, mesmo se vocês a chamam de barro, areia ou argila. O nome não importa.

 Antigamente chamavam-me carinhosamente MÃE TERRA, porque é de mim que nasce e volta o homem. E se orgulhavam de ser FILHOS DA TERRA porque o que vocês são, o são por mim. Em terra sadia e forte vocês serão fortes, sadios, dinâmicos e inteligentes. Mas quando estou exausta, decaída, doente e devastada, vocês, meus filhos, serão fracos, doentes e indolentes igual ao Jeca Tatu.

Vocês fazem muitos trabalhos científicos para tentar descobrir porque a inteligência da juventude está decrescendo e os currículos escolares têm de ser cada vez mais facilitados. Mas vocês destroem a alma pelo barulho e pelas drogas e destroem o corpo pela alimentação biologicamente incompleta e condimentada por resíduos tóxicos e depois se admiram que o circuito alma-cérebro não funciona mais. Portanto, sou eu que faço vocês progredirem ou caírem na miséria, sentir bem-estar ou serem arruinados, serem poderosos ou gloriosos ou serem submissos e escravos.

 Lembram-se dos povos que sumiram da história? Os sumérios, egípcios, etruscos, gregos, romanos, incas, astecas, mongóis, hunos e  muitos outros. Foram arrasados porque no seu bem-estar esqueceram os campos. Não faz diferença se vocês os entregam a escravos humanos ou a máquinas, ambos não se interessam por mim. E um grande presidente, Abraham Lincoln, disse: “Destruam as cidades e conservem os campos e as cidades ressurgirão. Destruam os campos e conservem as cidades e estas sucumbirão.” A cidade vive do campo e mesmo quando se abrigam entre vidraças e concreto armado nos seus prédios que parecem verdadeiros silos, não adianta. Sou eu que mantenho as cidades.

 Quando era jovem, uma vegetação exuberante me cobria e flores me enfeitavam. As árvores me deram sua sombra e as plantas com suas raízes me abraçavam carinhosamente estendendo sobre mim uma manta macia de folhas. Estava abrigada e protegida, zelada e amada. O sol me beijava furtivamente e a água da chuva  me eriçava no seu suave deslizar. E do meu sorriso brotava o cantarolar dos passarinhos. Era tudo festa.

 E vieram vocês, os homens, à procura de alimentos. Eu podia dá-los em abundância e estava ansiosa em fazê-lo. Tomava vocês como amigos e quis me entregar igual a uma esposa dedicada. Mas vocês não entenderam. Não queriam amizade nem dedicação. Queriam me explorar, dominar e violar estupidamente. Queriam enriquecer rapidamente. E me arruinaram. Agora sou fraca, doente, estragada igual a prostituta que todos usam e que ninguém zela.

 Minha pele macia se tornou encrostada, dura e rachada. Sulcos profundos marcam minha face, cavadas pelas lágrimas que a chuva me emprestou. Vocês sempre acham uma palavra “científica” para explicar porque não têm sentimento. Chamam isso de EROSÃO. Chagas me cobrem como feridas de lepra e vocês chamam isso de VOÇOROCAS, que se cavaram quase irremediavelmente na minha carne. Perdi minha beleza, minha saúde, minha fertilidade. Agora sou igual a prostituta que não gera filho, mas somente bastardo. Eu também não posso gerar mais colheitas fartas e nutritivas mas somente este pingo de safra, sem sabor e sem valor para a vida.

 As plantas que vocês cultivam não formam mais uma unidade comigo, não são mais ecótipos como vocês o denominam, ou seja, não são adaptadas ao que posso oferecer. Vocês criaram plantas estranhas, muito estranhas, com hábitos exóticos, mesmo se ainda se chamam de milho, arroz, algodão ou cana-de-açúcar. Agora não podem mais usar o que eu ofereço nem se satisfazem com nada que posso dar. Não sou mais mãe mas simplesmente um suporte. Vocês têm de “adaptar-me” às suas culturas, que não são mais amigas mas orgulhosas e desinteressadas.

Parece até que são hostis. E vocês de orgulham de seu trabalho genético e de seus hábitos híbridos. Até chamam-nas de HRV, Variedades de Alta Resposta. Pensei que fosse alta resposta aos adubos, mas me enganei. É somente que suportam elevadas quantidades de adubos. Eu, que dava rindo colheitas fartas, de repente não prestei mais. Me cobrem com toneladas e toneladas de calcário e me salgam com adubos, muito ácidos e muito agressivos. Me compactam com suas máquinas pesadas e me deixam nua, exposta ao sol abrasador e ao impacto de chuvas violentas. Me dão banhos fedorentos de venenos a que chamam Herbicidas para que as plantas amigas não nasçam mais ou morram, sendo que são elas as que se propõem a curar minhas feridas, revigorar minha vida e equilibrar os nutrientes. Mas vocês não permitem isso. Quem me quer bem, vocês perseguem.

 Sinto calor, tanto calor! Minha temperatura raramente fica abaixo de 42 graus Celsius, subindo até 76 ou 85 graus. Pensei que queriam cultivar plantas, mas parece que pretendem assá-las. Tenho dó de suas plantas porque apesar de tudo também não podem fugir às leis da natureza. Água quente não conseguem beber e por isso sofrem tanta sede. E a água que guardei para as plantas o sol evapora e o vento leva numa folia louca. Não entendo mais nada!

 O vento veio após derrubar a mata. Vocês devem saber porque tiraram toda a mata. A mata foi o termostato da natureza. Agora não tem mais termostato. A mata atraiu a chuva, agora não tem mais quem a atraia. Somente chove quando as nuvens ficam muito pesadas e depois dá um aguaceiro daqueles. Não posso me defender contra a força das gotas de chuva que golpeiam minha pele. Esta encrosta e a água em lugar de entrar suavemente por meus poros agora escorre quase toda. Dá enchentes, segue e seca.

 Dizem que o clima mudou, piorou. Mas terra quente não atrai chuva. Nem pode. O ar que também se aquece, em cima da terra quente, sobe até 80 km por hora, empurrando as nuvens para cima. Muitas vezes esse ar quente arranca a terra junto consigo. Leva-a até as nuvens e depois deposita-a longe. Também tem nome para isso: EROSÃO EÓLICA, ou seja, pelo vento. Mas nome não resolve.

 Deus me programou para produzir plantas e grãos, árvores e frutas, ervas e essências. A força divina programou a vida no meu seio de maneira sábia e perfeita:  as bactérias, fungos, pequenos animais até minhocas. São os zeladores do vigor da vida. Têm de decompor tudo que é fraco, doente, velho ou morto. Era uma polícia sanitária. Já imaginaram o que iria acontecer se os mortos não se decompusessem? Na Austrália há desertos por causa de plantas que não se decompõem. Mas toda esta vida rica e diversificada não existe mais, destruíram-na. Vocês não o sabiam? Parece que nunca sabem o que estão fazendo. A vida dependia das plantas, de sua grande diversificação. E a comida dela eram plantas mortas, que vocês chamam MATÉRIA ORGÂNICA. Agora vocês criam somente algumas espécies que são capazes de aproveitar o que as raízes de suas culturas soltam para a terra. Mas são culturas de um único tipo de plantas, são MONOCULTURAS. E com isso criam uma MONOVIDA. E estas, mais cedo ou mais tarde, atacam suas culturas. E vocês se defendem com venenos.

 No ano seguinte, plantam a mesma monocultura, que cria idêntica vida-praga. Sinto esta vida estranha crescer no meu seio, uma vida hostil que não serve para nada a não ser para eles mesmos. Onde está o equilíbrio, onde está  a atividade fervilhante, colorida? Era uma luta de todos contra todos mas a vida vigorosa sempre ganhou. Agora ninguém luta mais contra ninguém porque é uma vida uniformizada, monótona, que ataca suas culturas uniformizadas, monótonas e malnutridas. Onde estão as cadeias alimentícias nas quais cada um era presa e predador? Vocês dizem que “falta o inimigo natural”. Nunca ninguém foi inimigo no meu seio. Ou vocês são inimigos dos frangos, porcos e bois que comem? Criam-os para comê-los, mas inimigos não são.

 Quebraram as cadeias alimentícias e agora criam pestes e pragas, cada ano mais. Fico admirada como quantos insetos e fungos são capazes de mudar seus hábitos e viver de plantas vivas. Mas não são tão vivas! Se o fossem, ninguém podia atacá-las. Têm de ser suscetíveis. Você não pega gripe ou tuberculose se não é suscetível. Pessoa forte é não somente bem alimentada mas também bem nutrida, não pega doença. E nas plantas não é diferente.

 Eu forneci 24, 30, até 32 nutrientes para cada planta. Vocês dão somente 4 ou no máximo 6 nutrientes. E para que as suas plantas – não são mais minhas plantas – não consigam tirar nada do meu seio, fabricam uma laje bem dura em 12 ou 15 cm de profundidade nas quais as raízes não podem ultrapassar. Então são obrigados a ficar bem perto da superfície e viver de seus adubos. E como são gordas, igual a bebês criados com mingau de maisena, mas fracas, vocês banham suas culturas com venenos cada vez mais tóxicos. Matam o que restou da vida, também os “últimos inimigos naturais” mas criam pragas resistentes porque a natureza sempre tenta adaptar-se. Mas agora criam “inimigos naturais” e os soltam. Mas quem controlará estes? Têm certeza de que nunca lhes escaparão ao seu controle?

 Vocês sempre tentam “dominar” a natureza e se esquecem totalmente que são um fator do ecossistema em que vivem, uma ínfima parte da natureza. Vocês somente destroem. Eu, a terra, sou um organismo que vocês nem conhecem. Sou um mecanismo complexo, e muitos estudam fator por fator mas quando desmontaram tudo nas suas análises, não o sabem mais montar. Esperam que todos os “fatores” que me compõem sejam como peças sobressalentes numa prateleira de um depósito. Mas vocês já encontraram alguma coisa totalmente isolada neste mundo?

 Sinto-me mal, horrivelmente mal. A água que percola por mim, a terra, é carregada de tóxicos e de sais de seus adubos. Substâncias estranhas que passam para os rios, que se tornam viscosos, mortos e fedorentos. E por onde eles passam, antigamente trazendo vida e fertilidade, atualmente trazem a morte. E se pensam que a saída será o mar depois que me arruinarem, saibam que ele depende de mim. O mar não é um pote cheio de peixes mas um imenso deserto aquático e somente onde chega o húmus da terra há vida e há peixes. E onde a terra está estragada, o mar é morto.

 Sou a terra da qual dependem vocês e seus descendentes, sua vida ou morte. Comigo luta toda a natureza. Se um embaixador chega num país, ele é tão forte quanto a nação que ele representa. E eu represento a natureza, o universo, a vontade de Deus. Posso ser a amiga que vos leva ao progresso e bem-estar, mas se me maltratarem, a natureza vos destruirá. 

Sou a MÃE TERRA.

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