O Cruzeiro Marítimo

Outra aventura interessante, foi a minha viagem de volta ao Brasil em 1972, depois de passar seis meses na Bélgica como refugiado da ditadura brasileira, falsamente acusado de ser terrorista e sequestrador de avião.
Eu tinha que retornar urgente ao Rio de Janeiro para chegar a tempo de retomar o segundo semestre no curso de administração pública na fundação Getúlio Vargas.
Eu só tinha 300 dólares no bolso, insuficientes para comprar a passagem. Recorri à Embaixada do Brasil em Bruxelas, solicitando repatriamento. O embaixador foi muito gentil e esclareceu: ”Se você for repatriado nunca mais poderá viajar para o exterior, e seu passaporte ficará retido para sempre na Polícia Marítima. A melhor opção agora é você tentar viajar de graça num cargueiro da Marinha Mercante, pintando o navio e lavando o convés.”
Aceitei o conselho e segui imediatamente para Antuérpia, na esperança de encontrar algum navio brasileiro no porto. Tive sorte. À tarde chegaria um cargueiro do Lloyd Brasileiro; aliás novinho em folha, em viagem inaugural. Aguardei a chegada, entrei e subi à ponte de comando para conversar com o capitão.
Aí a sorte desandou. O capitão me recebeu mal, era extremamente severo, não pode me ajudar. Além disso, o cargueiro tinha só oito camarotes, todos ocupados.
Apesar de sua carranca, o capitão ainda me ofereceu carona no táxi que o esperava lá embaixo. Ao entrar no carro cumprimentei o taxista na língua dele, o flamengo
aparentado ao holandês. O capitão, surpreendido, me perguntou:
“ Você fala esta língua?”
“Eu entendo um pouco, é parecido com o alemão.”
“Alemão? Que história é essa de alemão?”
“ É que eu também ensino alemão.”
“Porque não me disse antes. Eu faço questão que você viaje no meu navio. Você vai me dar um curso de alemão em alto mar.”
“ Perfeitamente Seu Capitão!”
Seguimos para o escritório e lá foi emitida a passagem. Eu não viajaria de graça. Pagaria 165 dólares e estaria dispensado de qualquer tarefa a bordo, exceto as aulas. Comprei a passagem e ainda me restaram 135 dólares no bolso para pagar as últimas dívidas contraídas em Louvain.
Dois dias depois embarquei em Rotterdam sem ainda saber onde eu me alojaria. O capitão, um curtido lobo do mar, não se aperreou. Me conduziu a um quartinho lá embaixo, com um beliche, ocupado por um marujo indisciplinado que se comportara mal na viagem de ida e agora voltava prisioneiro para responder a um processo disciplinar no Brasil. Mas eu ficaria ali só 3 dias aguardando vagar um camarote. Era uma situação de alto risco. Quase desesperei.
A tripulação tomou conhecimento do meu caso e logo vieram me prevenir:
“Tome muito cuidado com este cara. Ele é perigoso. Bateu até no capitão.”
Respirei fundo, mas fazer o que? O navio já havia soltado as âncoras e lançava-se ao mar.
Eu me acomodei no quartinho com o marujo, homem forte e mal encarado, calado, todo pintado de tatuagens, destacando-se um grande punhal desenhado do braço esquerdo.
Subi para dormir em cima, ele embaixo. A primeira noite eu não dormi. Quando ele se mexia embaixo, eu acordava em cima, sobressaltado. Mas consolei-me, pois seriam só três noites.
Na manhã seguinte puxei conversa. Aí entendi tudo. Ele fora injustamente acusado de um roubo, organizaram uma sindicância e o capitão presidiu as investigações com máximo rigor. Só que em dado momento, o nosso marujo casualmente esbarrou no capitão, lançando-o ao chão, vexatóriamente.
Após explicar-me todos os detalhes, o bom marujo me perguntou:
“ Você também não faria o mesmo?”
“ Claro. Você tinha toda razão.”
E saímos para tomar sol. Durante horas. A tripulação não entendia nada, passavam por ali meio à distância, super-preocupados. Ainda mais quando nos encostávamos na murada, e eu, inocentemente, correndo sério perigo de ser subitamente arremessado às ondas. Pura fantasia.
No quarto dia, transferi-me para o camarote de luxo do piloto-prático que havia desembarcado na entrada do Canal da Mancha. Eu tinha todo conforto lá em cima. Mas todas as manhãs eu descia para passear com o nosso pacato amigo.
As tardes eu passava na ponte de comando ministrando aulas para o capitão. Além disso, eu, e ele também, éramos servidos por um mordomo todo uniformizado, gentilíssimo, que a toda hora trazia chá, café, doces, bolachas, e demais iguarias.
Após as aulas, íamos para a frente onde ficava o timão. A convite do próprio capitão, assumi o comando como timoneiro. Uma sensação maravilhosa: conduzir um imenso cargueiro em pleno oceano. A propósito eu havia fugido para a Bélgica, acusado de ser seqüestrador de avião. Agora voltando ao Brasil como timoneiro, eu perdia a grande oportunidade de seqüestrar um navio. E as aulas, na verdade eram uma permuta. O capitão aprendia alemão. Eu, nas horas vagas aprendia a dirigir navio.
Olha, gente! Foi um cruzeiro inesquecível.

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