O CAMINHÃO
A ABIO progredia e a produção aumentava.
Partimos então para o Rio de Janeiro. Montamos nossa segunda feira semanal, no Clube Hebraica, em Laranjeiras.
Dali transferimo-nos para o Mercadão da Cobal, no Humaitá. Montamos na Cobal o primeiro box orgânico.
Fazíamos o transporte nós mesmos. Eu tinha uma Kombi, e a cada duas semanas era a minha vez de transportar a carga de todos. Lotava a Kombi com até 40 caixas. Às vezes eu viajava sozinho. Geralmente meu companheiro era um alemão, Karl , também produtor associado.Saíamos depois da meia-noite, sob recomendações de sua mulher que ele conversasse o tempo todo para não me deixar dormir no volante. Já bem cansado, eu sempre parava num posto e tomava uma Coca-Cola com café. Cocaína com cafeína me fazia dirigir acordado por duas horas, conversando sem parar.
Às vezes, para melhorar o rebite, eu acrescentava uma colherinha de guaraná em pó e chá de urtiga dióica. Essa mistura me garantia por três horas, mais a conversa. Nunca dormia no volante.
Chegávamos no Mercadão ainda no escuro da madrugada, a tempo de descarregar e montar a banca no box.
Do lado de fora ia-se formando um montão de gente, aguardando a abertura.
Às 8 horas em ponto o portão era aberto e a multidão invadia o espaço, disputando o melhor lugar para atendimento no balcão. À frente vinham sempre jovens mamães procurando cenoura e beterraba para as papinhas.
Tínhamos que administrar as disputas.
Ao meio-dia encerrávamos as vendas, recarregávamos a Kombi com as caixas vazias, e extenuados e sonolentos, retornávamos sob o calor escaldante da baixada fluminense.
Muito satisfeito, eu chegava no sítio às 17 horas, e já encontrava a colheita pronta para carregar e sair na madrugada seguinte para a feira livre de sábado em Friburgo. Era quinta, sexta e sábado, quase ininterruptos.
O que mais cansava era o transporte, além do risco de atravessar, de madrugada, a baixada fluminense, zona de alta periculosidade.
Propus então ao companheiro Karl, católico fervoroso, escrevermos uma carta à Igreja Alemã pedindo a doação de um caminhão. Durante a feira comuniquei ao grupo nossa intenção. Deram risadas.
Redigimos a carta, fomos ao Bispo e pedimos seu aval. Prontamente ele assinou embaixo, e eu mesmo postei a carta no Correio.
Quatro semanas depois chegou um envelope, dentro uma carta-resposta, e pasmem, um cheque de 25 mil Marcos alemães, com o carimbo da Caritas Diocesana, vinculada ao Arcebispo de Aachen. Na feira seguinte, levei o envelope e, triunfante, exibi o cheque para todos.
Seguiu-se uma certa agitação, mas logo o presidente adiantou-se e exigiu: "Me dá esse cheque aqui."
O presidente, Prof. Raul Lucena, trocou o cheque na Casa de Câmbio, comprou o caminhão e contratou o motorista. Estávamos liberados das incômodas viagens.
Para mim o conforto durou pouco. Na ocasião fui recontratado pelo Banco da Providência, vinculado ao Arcebispo do Rio de Janeiro, para reassumir minhas funções no Projeto Mendanha, em Campo Grande, zona oeste do Rio, aliás outra zona de alta periculosidade, reduto dos atuais milicianos.
Combinei assim:
Eu viajo no caminhão acompanhando o motorista, desço de madrugada na Avenida Brasil, embarco de ônibus para o Mendanha e chego lá cedinho, antes de iniciar o expediente. Esquema perfeito. E assim foi.
Acompanhava o motorista, conversando o tempo todo, para não deixá-lo dormir.
Mesmo assim, no meio da viagem, ele parava num posto Ipiranga, para descansar 30 minutos. Na frente, na boléia, deitado só cabia um.
Procurei ajeitar- me lá atrás, na carroceria, junto com a carga. Não consegui. Por mais que tentasse, não encontrava uma posição razoável no meio das caixas.
Restava uma saída.
Desci da carroceria para acomodar-me debaixo do caminhão, sobre o asfalto e protegido por cima pelo caminhão e pela carga.
Sentia-me seguro, e já cansado, dormi profundamente por uns 20 minutos. E prosseguimos.
Correu tudo bem, trabalhei dois dias no Projeto Mendanha, e voltei para o sítio em Friburgo.
Em casa comentei com a família, mas pedi segredo.
Não contar para ninguém. Minha mãe ficaria horrorizada se descobrisse que seu mimado filho dormia no chão, debaixo de um caminhão.
Minha companheira Luciana me sugeriu levar pelo menos um colchonete. Foi um grande avanço.
Ficava protegido por baixo e por cima. E dormia o sono dos justos, por 30 minutos.
Uma vez começou a chuviscar. Nem liguei.Estava protegido.Poucos minutos depois, acordei subitamente, com uma enxurrada passando por baixo, inundando o lugar. Colchonete e eu encharcados.
Levantei-me rápido, acordei o motorista e seguimos viagem.
Ele seco, e eu secando-me, com o calor do corpo e com o calor do motor.
Tudo em segredo.
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